Capítulo 7 do Volume 1: O efeito Jinsel (Controlados)

De Wiki Petercast
Ir para navegação Ir para pesquisar

"O efeito Jinsel" é o sétimo capítulo da Parte I do Volume 1 da série Controlados (A Aliança dos Castelos Ocultos).

Ao terminar este capítulo, o leitor terá lido 12% do livro.

Esta página foi transcrita literalmente a partir da versão anterior do Neborum Online e precisa ter seu conteúdo adaptado para o formato de wiki.

Personagens[editar]

A fazer

Capítulo comentado[editar]

Cuidado! Você pode sofrer spoilers para o Volume 1 da Série Controlados se continuar a ler! Para ler a Série Controlados, é gratuito: leia online ou baixe o livro em PDF ou ePub neste link.

Fjor e Leo vinham andando lado a lado, abraçados; Beneditt vinha logo à frente, ofegante, com um sorriso que exalava completude estampado no rosto. Leila vinha correndo, quase aos prantos, ainda que misturados a risadas intermitentes. Depois de tocar mais nove canções, os músicos esperavam descansar um pouco antes de dar a noite por encerrada.

Leila foi a primeira a entrar na sala, esbarrando a porta para abri-la. Quase caiu, mas se recuperou, e aos tropeços jogou-se no sofá, soluçando de alegria por alguns segundos. Seus olhos miravam o teto, mas na verdade ela olhava o nada à sua frente; uma simples alternativa a fechar os olhos. A euforia a dominava e seus pensamentos eram confusos. Havia tantos momentos para relembrar, tanto para repensar --- se pudesse, reviver! Os rostos dos companheiros, do público; os sucessos e os pequenos, quase imperceptíveis, fracassos --- que noite incrível, incrível havia sido aquela!

Ao lado, os amigos se abraçavam e riam, congratulando um ao outro. De alguma forma ela sentia que naquele momento não deveria fazer parte daquilo. Queria seu próprio espaço, seu momento para si; um momento de silêncio depois de tanta música. Tinha, é claro, que fabricar o próprio silêncio e a própria paz, uma vez que os garotos tinham o mais comum tipo de euforia; aquela que obriga as palavras a saírem, ligeiras e por vezes sem sentido, da boca para fora.

Com olhos que misturavam o brilho do suor com o brilho de incipientes lágrimas, os homens reforçavam laços de sangue e amizade. Leila se perguntava se eles conseguiam sentir o quanto suas solidões continuavam intactas, erguidas como muralhas ao redor de todo humano, cada um vivendo em um casaréu particular, com cortinas fechadas e janelas empoeiradas. Aquilo fascinava as entranhas de Leila, que sentia como se elas se esmagassem depois de cada sucesso, de cada vitória. Sentia falta do pai.

O pai de Leila

A mãe de Leila, Terei, morreu durante o parto da filha, e portanto Leila é muito apegada ao pai, Tobias. Ela tem meio-irmãos que nasceram mais tarde por parte do pai, mas nunca se deu muito bem com eles. O pai mudou-se recentemente para Rirn-u-jir para ficar mais próximo de seus irmãos, que cuidam dos pais e avós, que por sua vez estão agora mais debilitados devido à idade avançada. A frase pode dar a entender que ele já faleceu, mas ela só sente falta da presença constante dele; ele está vivo.

A solidão de cada um

Quando Leila fala sobre as solidões dos amigos, que "continuavam intactas", estava se referindo ao fato de que, apesar das conexões que fazemos durante a vida, estamos ultimamente sozinhos em nossa experiência - não podemos sentir exatamente o que o outro sente, ver o que o outro vê, pensar o que o outro pensa, e ninguém pode assumir a nossa perspectiva; nós estamos sós com nós mesmos, cada um dentro de si, e ela pensa poeticamente sobre o assunto.Há dois detalhes importantes, contudo. Em primeiro lugar, é curioso que, mesmo que ela não seja maga, ela tenha descrito a situação de maneira análoga a Neborum: a única diferença é que em vez de castelos ela se refere a "casarões", mas a ideia é muito similar, pois representa cada pessoa como uma construção bem apartada e isolada de outras, sem possibilidade de mistura. Em segundo lugar, essa simbologia da solidão ocupa lugar importante na história do pensamento e da poética de Heelum, especialmente porque a Rede de Luz permitia superar, em partes, essa solidão, uma vez que permitia o compartilhamento das experiêncas pessoais. O desaparecimento da Rede de Luz enquanto episódio marca essa solidão como algo pior do que alguma forma de condição ou natureza humana: ela não costumava ser assim, mas agora é.

Beneditt passava a mão no cabelo, que pingava suor. Por dentro, estava finalmente em paz, encostado à parede como estava. Leo e Fjor serviam-se de água num apêndice arquitetônico nos fundos da sala, perto do sofá.

Alguém bateu à porta. O susto, apesar de pequeno, foi geral. Olhares logo se cruzaram, como se todos precisassem de respostas que sabiam que ninguém tinha. Leo deu uma última olhada sem sentido para Beneditt e, largando o copo em cima da mesa encostada à parede, atravessou a sala.

O homem do lado de fora deu um sorriso singelo quando viu aquele jovem, com um cabelo incrivelmente --- já que era tão curto, pensou Seimor --- bagunçado e um nariz pouco notável por qualquer particularidade. Leo exibiu um rosto neutro ao observar o homem gordo, careca e possivelmente trinta rosanos mais velho.

--- Posso entrar? --- perguntou Seimor, apontando para o interior da sala.

Leo, temeroso, ampliou a abertura da porta e lançou olhares para Beneditt, mais próximo a ele, e Fjor, que voltava ao centro da sala com um copo de água na mão.

Seimor entrou devagar, olhando para todos, demorando-se em cada um. Os olhares de Leo procuravam por ajuda --- ajuda para entender; queria poder confirmar que seus pares também nada sabiam sobre aquele homem. Os olhares de Seimor estabeleciam uma cordialidade fugaz. Com uma expressão facial séria, o largo e espaçado rosto parecia investigar com pacífico escrutínio os músicos antes de decidir se mereciam ou não uma saudação.

Os olhos de Seimor eram de um castanho-escuro muito vivo. Quando encontraram os olhos castanhos com um leve toque de verde de Leila, provocaram um calor --- e uma determinação --- que o fustigavam ao extremo. Ela sentiu-se apenas curiosa pelas intenções daquele homem, que passava considerável tempo a mais olhando para ela ao invés de dizer logo a que veio.

--- E o seu nome é... ? --- Perguntou Leo.

--- Meu nome é Seimor. Sou um agente musical.

Os olhares se transformaram, cruzando-se em um ritmo alucinante demais para registrar; Leila sentou-se no sofá, pois a posição relaxada em que estava não condizia com seu estado de alerta. Ela buscou o olhar de Leo, que olhou para Fjor; este olhou para o chão no instante do anúncio, com medo de que engasgasse. Beneditt procurou olhar para Leila, mas quando esta tentou olhá-lo de volta, ele já havia buscado o olhar de Leo no momento em que este olhava de volta para o homem --- enquanto Fjor tentava, em vão, comunicar-se com Leo.

--- Gostei muito do show.

--- Obrigado, senhor! --- Disparou Leo, sorrindo tanto quanto no fim do show. --- Obrigado mesmo!

--- É, nós... Demos o nosso melhor essa noite! --- Completou Beneditt, sem saber o que dizer. Pensou, logo depois, que essa talvez não fosse a melhor coisa a ser dita. E se aquilo não fosse bom o bastante para ser o máximo do potencial deles?

--- Sim, sim... E não é sempre que uma banda nova ganha essa aprovação do Colher de Prata.

--- Limão. --- Corrigiu Fjor, recebendo um forte olhar de reprovação por parte de Leo.

--- Limão! Sim, Colher de Limão! --- O sorriso de Seimor diante da correção pareceu a Leila um pouco menos autêntico. Ela ficou nervosa. Por que Fjor tinha de corrigi-lo?

Seimor passou mais algum tempo com os olhos voltados para o irmão mais novo de Leo, mesmo sem ter o olhar retribuído; deixou de ver, por isso, a muda bronca que Leo tentava transmitir. Seimor parecia concentrado.

Fjor voltou-se para ele, subitamente desconsiderando a conversa sem sons que estava tendo com o irmão.

--- Quer um copo de água? --- Perguntou, como se tentasse consertar as coisas.

--- Não, obrigado. --- Seimor olhou de esguelha para Leila. --- Eu disse prata porque estava pensando no Mina de Prata.

--- Mina de Prata? --- Perguntou Leo.

--- É uma casa de shows. Quero convidá-los a se apresentarem lá. Não se preocupem. --- Fez um movimento com as mãos, como se quisesse tranquilizá-los. Voltou a olhar para Leila. --- Receberão pelo show, como receberam aqui. Quero que venham e toquem na Mina de Prata e, então... Poderemos ter um acordo.

--- Acordo, que... Tipo de acordo? --- Leo desenvolveu um sorriso simultaneamente amedrontado e feliz; é como se estivesse ou com medo da felicidade que aquilo lhe traria, ou com medo de ter entendido erroneamente o sentido da palavra "acordo".

--- Mas onde fica o Mina de Prata? Eu nunca ouvi falar. --- perguntou Leila, atravessando-se à pergunta.

--- Ah, sim, pois não, eu... --- Seimor olhava agora mais profundamente para Leila. Ele apertava os olhos, como se visse algo de errado com ela. Leo aproveitou que ele se virava na direção oposta e, com a boca e as mãos, perguntou aos outros: "O que há de errado com ele?". Depois de algum tempo, ele voltou a falar, respondendo. --- Você nunca ouviu falar porque não fica em Novo-u-joss. Qual é o seu nome?

--- É Leila. --- Disse ela. Por um momento sentiu-se irritada com o desvio da conversa, mas logo sentiu-se melhor. --- E onde fica, então?

--- Em Jinsel.

Novos olhares cortavam o ambiente, incidindo cruelmente sobre cada um dos membros da banda.

--- Algum problema? --- Perguntou Seimor, sério, tornando a olhar para Leo.

--- Não, é que...

--- ... Jinsel não é apreciada por aqui. Entendo. Bem...

Seimor fez menção de ir embora e Leo o alcançou, aflito, segurando-o pelo ombro.

--- Não, espera! Eu... --- Ele olhou para os outros, buscando argumentos. Como só via pessoas sem saber o que fazer, decidiu falar por si. --- Nós não temos problema algum com Jinsel, podemos ir até lá. --- Leila concordava, de leve, com a cabeça; os outros não mostravam aprovação. Era como se estivessem em estado de choque. --- Apenas diga como podemos chegar lá e quando, e-e nós vamos.

A fama de Jinsel

Jinsel é uma cidade polêmica e mal vista por uma série de razões. Não é uma boa ideia discuti-las todas aqui neste momento, mas alguns dos motivos costumam ser o fato de que é uma cidade com forte teor ideológico a favor da magia (nenhum tipo ou nível de magia é proibido), notória corrupção, notória miséria, serviços públicos decadentes, uma cena musical dominada por rock da cidade (o que, no contexto deste capítulo, é relevante também), por ser a principal difusora e símbolo da revolução sexual, entre outros. Nem todos sabem de tudo isso e em detalhes, mas difundiu-se a ideia de Jinsel como um lugar, em geral, ruim e marginal.Essa versão popularizada e fantasmagórica deste estereótipo é particularmente fértil em Novo-u-joss; como numa espécie de identidade negativa (conceito que vem de Hegel, leia mais aqui [inglês]) a cidade constrói sua auto-imagem enquanto uma cidade que não é Jinsel, que é seu oposto: ao apostar na qualidade das artes e da vida comunitária eles estão acima dos grosseiros, dos brutos e dos vulgares. Ao contrário da divisão greco-romana entre civilizados e bárbaros, contudo, isso não envolve tanto um orgulho ativo e um desprezo esnobe, mas uma espécie de medo e complacência.

Seimor virou a cabeça para Leo.

--- Pois bem. Cheguem daqui a dez dias, até as dez da noite. Perguntem pelo Mina de Prata. Todos sabem onde ele fica.

E, dizendo isso, começou a caminhar mais uma vez.

--- Senhor Seimor... Que tipo de acordo era aquele?

--- Ora, um acordo! --- Respondeu ele, virando-se antes de alcançar a porta. --- O acordo que vocês provavelmente sempre quiseram. Colocaremos vocês nas maiores casas de shows de Heelum. Novo-u-joss é pouco. Iremos a Kor-u-een. Al-u-een. Ia-u-jambu. À Cidade Arcaica. --- Ele falava em um tom profético, mas átono, como se a certeza fosse, sozinha, responsável pelo formigamento que os músicos, sentindo-se convencer, viam subir aos membros. --- As pessoas ouvirão vocês. Conhecerão vocês. Vocês nunca terão que trabalhar de novo.

"Viverão de música".

Viver de música

"Viver de música" é uma expressão comum que designa a rotina típica dos músicos que conseguem fama e relativa riqueza: ao se sustentar com a própria música, dedicam-se inteiramente a ela. Como é algo bem difícil de se conseguir - e isso não é necessariamente vitalício, mas uma condição temporária que se deve trabalhar duramente para manter - a possibilidade de terem encontrado um caminho rumo ao "viver de música" é certamente um grande golpe de sorte.Um contrato musical com um agente não constitui, entretanto, esse estado descrito pelo "viver de música". O contrato é um investimento que dá por um tempo - os músicos efetivamente "vivem de música" ao terem suas despesas pagas por um certo período, mas ganham pouquíssimo dinheiro para eles, como uma espécie de pagamento livre - mas se passado esse período o agente não estiver feliz com o rendimento ou os prospectos deles, o contrato determina um período de trabalho obrigatório sem as despesas pagas - momento a partir do qual os músicos não apenas devem se apresentar como também trabalhar para o sustento próprio. Em caso de sucesso durante o período de "experimentação", contudo, os músicos passam a ganhar mais dinheiro não-administrado, e a receber mais atenção por parte do agente. As bandas que fracassam não costumam cumprir o resto do tempo de contrato fazendo shows que realmente os levarão de volta ao sucesso, contudo: eles são postos, neste tempo de trabalho obrigatório não-remunerado, para cumprir acordos entre agentes e lugares como restaurantes e bares.

O olhar de Leo parecia ter trincado ao ouvir aquelas palavras. Leila as digeria, e um entusiasmo que ela nunca havia sentido antes tomou conta dela. Beneditt e Fjor, pensando em sintonia, não se sentiam à vontade com o forasteiro levando a eles uma proposta tão boa.

--- E que música nós vamos tocar depois do acordo? --- Perguntou Fjor. A raiva de Leila e Leo só fazia crescer; como era possível que ele estragasse tudo tão frequentemente?

Seimor riu, dispensando a pergunta com a mão e, balançando a cabeça de uma maneira amigável e contida, respondeu:

--- Eu gosto de música boa. Como todo mundo!

Então aquela era a oportunidade deles. Leila colocou o punho fechado sobre a boca e tentou entender, enfim, o que se passava em sua mente. Em geral, gostava de música. Gostava de escrever música e de tocar música. Antes, ela não se importava de não fazer disso sua profissão. Mas agora...

Queria poder ir pra Jinsel naquela mesma noite, tocar no Mina de Prata e fechar o acordo de uma vez!

Leila olhou para a frente, assustada, e viu que Seimor olhava para ela com o mesmo rosto de quem tenta ou descobrir algo no local para onde olha --- ou tenta se lembrar de algo.

--- Mais uma coisa... --- Ele se virou para frente, passando a encarar Fjor e Beneditt. --- Nenhum de vocês é um... Mago, certo?

Todos balançaram a cabeça automaticamente, sem precisar pensar a respeito.

--- Não, senhor... Por quê? É-é preciso saber de magia ou conhecer alguém?

--- Não. Pelo contrário. Em nossa agência somos estritamente contra magos. Então, é melhor não estarem mentindo.

O jogo de Seimor

Por que Seimor faz uma proposta tão complexa e difícil? Se ele gostou da banda - e aparentemente está pessoalmente interessado em Leila - por que não facilitar as coisas e contratá-los no ato? Em primeiro lugar, vamos aos motivos: Seimor - o que ficará mais claro em capítulos vindouros - não é nenhum romântico, e se Leila é apenas mais uma conquista ele, como pessoa de negócios, não quer prejuízos como consequência de aventuras. A lógica é: é preciso que, mesmo após a conquista, a banda seja minimamente lucrativa. Se a banda não for boa o bastante, arranja-se outro jeito de ter Leila mais tarde. Para que a banda seja "boa" - trabalhando com o conceito de Seimor do que seja uma banda boa - é preciso acima de tudo que ela possa tocar sob qualquer condição. Por não conhecer inteiramente a história e a pressão do Colher de Limão ele ignora um pouco o cenário - até porque o público estava ali para vê-los e no final demonstrou aprovação. Seimor precisa saber que a banda pode encarar qualquer coisa, e ele precisa fazer seu próprio teste. Além disso, Seimor não quer problemas com imprevistos - sua personalidade é de querer ter tudo quanto possível sob controle. Sendo assim, se a banda não for posta à prova Seimor não saberá o que eles estão dispostos a sacrificar e fazer em prol da música enquanto profissão. A banda que encara as condições propostas por Seimor não apenas quer aquilo - e portanto terá menos chance de mais tarde querer simplesmente abandonar tudo - como também vai dar mais valor à posição que conquistar enquanto banda agenciada. Mais tarde veremos como de fato a primeira questão mostrou-se verdadeira, mas a segunda nem tanto. A incapacidade de Seimor de se relacionar com a cultura musical de Novo-u-joss o levará a uma situação complicada. Clique aqui para ler um comentário relacionado no capítulo 6 - comentário extremamente recomendado para complementar este que você acaba de ler.

Seimor: um mago?

Esse é um ponto sobre o qual é interessante um esclarecimento da opinião do autor quanto a um assunto de apreciação artística em geral: a interpretação dos autores não quer dizer muita coisa. Assim que uma obra é publicada e lida - ou assistida, vista, enfim - ela foi exteriorizada e está sendo incorporada ao mundo de outras pessoas. O mundo que o autor criou agora está sendo descoberto e ressignificado. Não interessa mais tanto o que ele pensa; se as pistas levam em alguma direção para algum leitor, essa direção, para esse leitor, estará mais que adequada. Não é porque o autor vê as coisas de maneira diferente que isso torna inválida visões alternativas. Da mesma forma, o autor tem uma opinião sobre o status de Seimor quanto à magia: ele é um mago ou não? A ambiguidade é proposital: Seimor pode ser visto com razoabilidade tanto como mago quanto um não-mago. As ações que se explicam por magia podem se explicar como desenvolvimentos independentes e auto-motivados por parte daqueles que estão ao seu redor, e a influência que tem se explica pelo dinheiro, pelas posses, até pelo renome no ramo de atuação.

O caminho de volta para casa não foi esperançoso, alegre ou mesmo sonoro como o anterior. A charrete estava mais cheia; cerca de onze pessoas se amontoavam junto aos quatro integrantes da banda e seus instrumentos. Algumas conversavam --- embora nenhuma, aparentemente, esteve no Colher de Limão naquela noite --- mas o semblante perdido dos músicos indicava a qualquer um que falar com eles não era uma opção naquele momento. Leila, com a cabeça abaixada, lançava olhares furtivos para os companheiros vez ou outra. Queria poder se comunicar com eles, de uma maneira simples como aquela que fosse, para tentar descobrir o que sentiam. Se sentiam o mesmo que ela.

Ela se perguntava, afinal: quando foi que deixou de acreditar na simplicidade da música que faziam? Não deixara, ela concluiu; ainda esperava que continuassem assim. Mas a vida seria tão diferente se eles fossem para Jinsel... Positivamente diferente. Os shows em grandes casas, uma vida de viagens e aventuras --- mas também de dinheiro suficiente para comprar terras quando estivesse cansada daquilo tudo.

Sim, porque sabia que se cansaria. Não havia um dia em que a imagem de Cordélia não a inspirasse a pensar em seu próprio futuro longínquo. Ora, teria uma mente sã como a dela? Ainda conseguiria escrever? Mas, ainda que escrevesse, conseguiria aguentar um show? Gostaria de fazer isso? E seu corpo, o que mais se daria ao luxo de se permitir? Quem se responsabilizaria pelos gastos da casa quando ela não pudesse mais fazê-lo? Ela teria que formar uma nova família, feita de pessoas extremamente benevolentes que quisessem suportá-la. Aquela pressão em seu peito era tão asfixiante quanto libertadora; sentia-a quando pensava em um futuro desse tipo, mas sentia agora também, quando o calor de uma decisão se aproximava e ela queria... Mordia os lábios por não saber como terminar a frase.

Formar uma família

O termo "formar uma família" tem um significado um pouco diferente. Não se trata necessariamente de ter filhos com alguém; na cultura de Novo-u-joss, significa encontrar pessoas dispostas a dividir uma casa. Essas pessoas geralmente são amigos ou parentes distantes, mas muitos jovens escolhem formar famílias com pessoas não tão próximas pela aventura da situação toda. Cordélia, por exemplo, formou família com seus netos e com dois amigos deles, o que configurou uma vantagem (financeira) para todos, mas não se trata apenas de cortar custos. A habitação comum em Novo-u-joss é aquela em que moram várias pessoas; a ideia de morar mais sozinho ou mais afastado de uma jir é esquisita a ponto de passar como uma não-opção: o primeiro pensamento é sempre formar uma família.

Fjor, de cabeça jogada pra trás, buscava conselho nas estrelas. "Por que é que não temos mais a luz?", pensava ele. Alva luz, sábia conselheira... Mesmo que não desse conselhos e mostrasse um caminho, pelo menos faria com que fosse menos difícil chegar a uma opinião comum.

Fjor pensava que precisariam de um sério plano de contingência. Aquele homem não lhes tinha oferecido uma conversa sobre um acordo: lhes dera uma missão a cumprir caso quisessem conversar. E se a missão não fosse completada de maneira satisfatória? Ainda teriam o emprego quando voltassem para Novo-u-joss? Conseguiriam voltar para Novo-u-joss?

O mesmo tipo de dúvida permeava os pensamentos de Beneditt. Ora, de onde aquele homem tinha vindo? Pra onde ia, por que era tão estranho? Era como se algo dentro dele estivesse preso, e ele precisasse recolocar as coisas no lugar antes que tudo pudesse funcionar de novo. A proposta não lhe parecia ruim, mas, de forma reversa ao que acontecia com Leila, sentia medo agora que tinha a chance de sair dali. Achava que não queria um lugar só para si, mas embora realmente não quisesse viver sempre no mesmo lugar, começava a achar pouco conveniente não ter um lugar para o qual voltar. Se este fosse o caso, apoiaria ou não a "expedição" rumo a Jinsel?

Leo, por sua vez, sonhava. Estava ciente das dificuldades --- e esperava convencer os outros de que tudo ia ficar bem. Poderiam conseguir emprego em outros lugares, mas apenas se de fato precisassem. Talvez seu empregador (de todos que moravam com ele, na verdade), senhor Josep, entenderia a situação e não os demitiria.

Essa era a chance da vida deles. Não podiam desperdiçá-la.

Quando finalmente percebeu que estava no chão, e não mais sacolejando na charrete, Fjor já estava chegando perto de casa; a luz amarela vazava por debaixo da porta e pelas frestas da janela. Todos os outros iam à sua frente quando ele parou.

--- A gente precisa discutir isso.

Eles olharam para trás, parando também.

--- É uma proposta boa... --- Começou Leo.

--- A gente não conhece aquele homem, Leo. --- ponderou Beneditt.

--- Eu vou subir. --- disse Leila antes de virar as costas e seguir em frente.

--- Leila! Leila! --- Fjor tentou chamá-la para a discussão, mas ela se negou a ouvi-lo.

--- Ela está certa, Fjor. Eu também estou cansado, a gente devia discutir isso amanhã.

--- Não quero discutir isso amanhã. E você nem vai conseguir dormir, Leo.

--- Bem... --- Riu ele. --- Do jeito que eu estou, é tão possível que eu durma quanto o contrário...

Leila deixara a porta aberta, e os três foram entrando. Largaram os instrumentos no chão e foram até a cozinha, de forma que a luz enfraqueceu.

--- Isso é muito arriscado.

--- Eu acho que devemos ir. --- Contrapôs Leo.

Os dois irmãos olharam para Beneditt, que sentiu o peso do que quer que dissesse.

--- Eu não sei. De qualquer forma, a Leila tem que falar também.

--- Queremos ouvir você também. --- disse Fjor. A expectativa em seu olhar igualava à de Leo.

--- Eu... Eu acho arriscado também, Leo. --- O irmão mais velho fechou os olhos e virou o rosto para o outro lado, para não ter que olhar Beneditt ou Fjor, que já se virava para ele com uma expressão de vitória no rosto. --- Mas também não acho que isso seja motivo para não irmos.

--- ... Droga, Beni, por que você tem que sempre ficar em cima do muro?

--- Eu não fico sempre em cima do muro! --- Defendeu-se, embora soubesse que raramente tomava partido.

--- Não importa se fica ou não. --- Replicou Leo, ainda sério. --- Vamos mudar a pergunta, então. O que você quer fazer?

--- Você não entende, Leo... Não é sobre o que a gente quer fazer, mas o que a gente pode fazer! --- Fjor expressou concordância, e Beneditt continuou. --- O porquê de a gente fazer é tão importante quanto a gente fazer ou não.

--- Eu não... --- começou Leo.

--- Por isso que eu não digo sim ou não, simplesmente... A gente precisa pensar isso direito, porque a avó de vocês depende de nós, inclusive.

--- Eu sei disso! --- Leo ficou visivelmente irritado. --- Você faz parecer que eu não me importo com ela!

--- Não foi isso que eu quis dizer.

--- Mas falou como se fosse o primeiro a pensar nela.

--- Leo, não foi isso... --- Fjor tentou acalmá-lo, mas sua voz foi morrendo no caminho.

--- ... Escuta, eu sei que a minha avó precisa da gente, mas com o que ganharmos num acordo como esse podemos dar a ela tudo o que já damos agora e muito mais!

--- Mas se falharmos... --- Advertiu Beneditt. --- Não teremos mais nada.

--- Mas o que é que temos agora, hein? Hein, Beni? Moramos juntos há dois rosanos e temos tocado em pequenos lugares há muito mais tempo. Isso tem sido ótimo, embora seja cansativo trabalhar como a gente trabalha. Mas tudo bem. Agora, deixa eu te perguntar: você quer ficar assim pra sempre?

--- Isso não é apenas sobre nós, Leo... --- Disse o amigo em tom de alerta.

--- Não use a minha avó como desculpa pra não tentarmos, Beni! --- Leo quase berrava agora, e Fjor o lembrou de que Cordélia dormia no quarto ao lado.

--- Não é desculpa, é uma razão!

--- Não podemos deixar os nossos sonhos de lado, Beni, a gente precisa arriscar, precisa...

--- Nossos sonhos ou os seus sonhos, Leo?

Leo parou de falar. O clima havia ficado mais pesado do que Fjor esperava que ficasse.

--- Então você não quer viver de música?

--- Seria bom, é claro... Mas a que preço, Leo?

--- Você não falou de preço dessa vez, você falou de sonhos, Beni. Você quer ou não quer viver de música?

Beneditt não sabia como responder, e buscou compreensão em Fjor, que tampouco sabia o que falar. Os três ouviram a escada metálica ranger, e viraram-se na direção da porta da cozinha. Depois de alguns segundos de silêncio, Leila soube que denunciara sua posição e desistiu de se esconder, descendo as escadas. Ainda vestia a mesma roupa do show e, parecendo bastante acordada para o sono que implicitamente professara sentir, aproximou-se dos homens que a olhavam com curiosidade.

--- Eu... Acho que a gente deve ir.

Leo deixou escapar, com um sorriso, a respiração que havia prendido. Fjor deixou a cabeça pender para o chão, e Beneditt a olhou com paciente preciosidade, à espera de uma novidade que viesse mudar o que ela dissera.

--- Eu também acho, Leila. --- Apoiou Leo.

Beneditt queria perguntar qual era a lógica da amiga, mas preferiu ficar quieto, colaborando para um silêncio que já não deixava ninguém tranquilo. Pelo contrário: os esmagava com indeterminação.

--- Acho que já está tarde e a gente pode discutir isso melhor amanhã. Com a vó junto. --- Leo passou por Leila enquanto subia as escadas. --- Eu vou dormir. Boa noite.

Fjor o seguiu, murmurando boa noite para os dois que sobraram, sem olhar para Leila. Ela começava a se virar para sair da cozinha.

--- Leila... --- Chamou Beneditt. --- É realmente importante pra você, isso? Ser "grande"? Ter um acordo?

Ela se voltou para ele novamente, sorrindo.

--- Eu não achava que fosse, Beni. Mas eu também nunca tive a oportunidade, e... Era algo sempre distante. Mas quando ela apareceu essa noite, eu... Senti que é a coisa certa a fazer. Senti que é o que eu quero fazer.

Os dois diziam muito mais sem falar nada. Ele, de braços cruzados, apoiado no balcão da cozinha, esperava que ela lhe dissesse tudo. Sabia que havia mais para ser dito. Ela, por sua vez, tentava lhe dizer que aquilo era o seu limite.

--- É por causa dele, não é? --- Apertou ele.

--- Beni...

--- Leila, você não precisa...

--- Beni, me ouve! --- Leila se aproximou. --- Sou eu, tudo bem? Eu realmente quero fazer isso, mas só estava indecisa. Como você e o Fjor, eu estava com medo. Mas eu sei que esse é o sonho do Leo, e... Eu não posso deixar isso morrer. Isso acabaria com ele.

--- E isso fez você decidir?

--- Bem... Sim.

Havia muitas coisas que Beneditt queria dizer a ela, mas sentiu-se desprovido de forças para tentar convencê-la de qualquer coisa. Convencê-la de quê, afinal? Já não sabia mais por que brigara com Leo. Ele estava perseguindo seus sonhos, e Beneditt precisava decidir logo quais eram os seus ao invés de exigir que os outros permanecessem abertos a opções. Como se Leila pudesse ler seus pensamentos, acariciou sua mão e, momentos depois, foi para o quarto, fazendo a luz da cozinha brilhar mais forte.

Brilho da luz

Os minérios de luz possuem níveis variados e geralmente aleatórios de sensibilidade ao calor, embora a maioria seja de um tipo sensível o bastante para perceber a alteração no ambiente quando Leila vai embora - sem o calor de seu corpo o lugar fica um pouco mais frio, o que faz a luz brilhar um pouco mais forte. Clique aqui para ler o artigo do Neborum Online explicando o que são e como funcionam os Minérios.

Ver também[editar]

🗺 Você está navegando pela Wiki Petercast! Para voltar à página principal especificamente do Neborum Online, clique no link do submenu Neborum Online na barra à esquerda!