Capítulo 1 do Volume 1: Isolados (Controlados)

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Isolados
Volume 1
Parte I
Número 1
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Em "Isolados", capítulo que inaugura toda a série Controlados, o mago alorfo Lamar ensina magia a um grupo de alunos em Prima-u-jir, mas o mago Tornero, antiga desavença, ordena que interrompa suas atividades.

Personagens[editar]

Capítulo comentado[editar]

Cuidado! Você pode sofrer spoilers para o Volume 1 da Série Controlados se continuar a ler! Para ler a Série Controlados, é gratuito: leia online ou baixe o livro em PDF ou ePub neste link.

As nuvens passeavam pelo céu, estufadas e lúdicas, impedindo o sol de aquecer a terra tanto quanto poderia. Flutuavam devagar, amarelas como campos de trigo, atravessadas por serenos raios de luz já levemente alaranjados em um firmamento que insistia em permanecer azul.

As nuvens amarelas
Como o branco não existe em nada em Heelum a não ser a Rede de Luz e os Arcos Brancos, qualquer objeto que seria de outra forma branco para nós assume cores diferentes. Nuvens, por exemplo, são amarelas. Outros exemplos serão apontados ao longo do livro.
por Peterson Silva (Autor)

Em pé diante do Rio da Discórdia, que seguia lépido seu curso, ele olhava além. Não conseguia discernir sequer contornos, grosseiros que fossem, das Montanhas do Céu --- o limite do deserto de Imiorina, que se estendia impiedoso e seco num horizonte a perder de vista. Atrás de si ficava a pálida colina que ele contornou pra chegar àquelas paragens aos pés d'água, afastadas do centro da cidade mas nem por isso difíceis de encontrar; apenas o suficiente para que ele e seus alunos ficassem distantes, isolados.

O Rio da Discórdia
O Rio da Discórdia nasce na montanha oeste das Montanhas Gêmeas (conhecidas por vários nomes, como Guardiãs do Deserto, Gêmeas do Deserto ou como formando a Passagem do Deserto). É claro, límpido e veloz, alargando-se até sua união com o Rio Pesado, que dá origem ao Rio Prima. Tem 79 pontos de comprimento. Para localizá-lo nos mapas e entender a questão dos pontos de comprimento, clique aqui.
por Peterson Silva (Autor)


As Montanhas do Céu
Compõem o grupo de montanhas ao norte do deserto de Imiorina e ao sul da porção mais ocidental da Grande Floresta de Heelum. Ver mais no mapa.
por Peterson Silva (Autor)


O Deserto de Imiorina
É uma das duas áreas secas presentes em Heelum, sendo a maior delas. É cortado pelo rio Imioraunk, ao longo do qual a cidade de Imiorina floresce. Ver mais no mapa.
por Peterson Silva (Autor)


Prima-u-jir
por Peterson Silva (Autor)

Estava em pé porque não gostava de se sentar. Não ali, não naquele momento; não pensando em quem deveria ser. Não quando não se continha em si mesmo de nervoso entusiasmo. Juntava as mãos inquietas atrás das costas, sentindo a aspereza rude das vestes marrons, andando de um lado para o outro de vez em quando.

--- Mestre? --- Disse uma distante voz feminina à esquerda.

--- Estou aqui! --- Respondeu ele, pigarreando em seguida. Logo viu surgir por detrás da colina uma mulher de rosto abatido e um longo vestido roxo. Apressou os passos abertos, andando até ele com um corpo largo e cabelos dourados sem brilho.

--- Boa tarde, mestre!

--- Boa tarde, Enrita.

O professor baixo e calvo, com um rosto que a escassez emagreceu mas não tornou menos redondo, voltou a olhar para o rio enquanto a aprendiz sentava ao pé do morro. Outros alunos foram chegando; sozinhos ou em grupos. Serenos e sorridentes, heterogêneos e simpáticos, juntaram-se em uma pequena multidão de vinte e seis pessoas. A quantidade de homens e mulheres era bastante igual, com tantos jovens quanto adultos, mas sem nenhuma pessoa mais velha.

Lamar, desfazendo a posição dos braços, passou a segurar as duas mãos à frente do corpo, como se uma precisasse acalmar a outra. Tudo tinha dado certo na última vez em que estiveram naquele lugar --- isto é, considerando quão errado tudo poderia ter dado. Fazer aquilo era arriscar muito, como ele já havia, a seu modo, amargamente aprendido.

--- Bom... --- Começou ele, esfregando as mãos. --- Já que todos estão aqui, então... Podemos começar.

Lamar girava o pescoço, tentando captar num só olhar todos aqueles rostos obstinadamente curiosos. Sorriu, o nervosismo escapando pelas narinas, e logo inspirou a certeza de que todos ali estavam sedentos pelo saber que lhes era proibido.

--- Hoje nós vamos começar a treinar um ataque. Um ataque bastante simples. --- A mudança de postura e os inibidos murmúrios de excitação indicavam interesse. --- Na verdade, eu penso que essa é a técnica mais simples de todas.

Alguns homens realmente jovens, vestindo coletes de couro por cima de largas camisas azuis, o observavam ainda mais suspensos em expectativa, à esquerda. Lamar fez um esforço mental para se lembrar do nome deles, mas não conseguiu.

Aquilo não era realmente um problema --- afinal, lembrava do nome de muitos outros. Havia alguém lá, porém, que não lhe era nem um pouco familiar. Parecia um homem, e confundia não apenas sua aparência como também a atitude; algo de todo incomum, sem dúvida, ainda que o parâmetro de comum não estivesse bem estabelecido ainda. Usava uma veste laranja, grossa, longa e chanfrada, e por cima uma grande capa negra, com um capuz em que o tecido sobrava. Lamar não conseguia ver o rosto por debaixo dos panos.

--- Então... --- disse ele, num rompante, seguindo um impulso de continuar a aula. Poderia interpelar o aluno novo mais tarde; não havia tempo a perder. --- Vamos formar pares, sim?

Os estudantes aquiesceram, começando o arranjo de duplas. Ficaram de frente um para o outro, de pé, a uma curta distância. Antes de passar a eles as instruções iniciais, Lamar sentiu-se um pouco cansado nas pernas. Era uma sensação incômoda; uma espécie estranha de dor nas articulações que crescia enquanto ele caminhava --- Só podia ser o resultado de tanto andar para chegar até ali. Resolveu sentar no chão para ver se conseguia se sentir melhor.

Os aprendizes olharam para ele, confusos. Percebendo o pesado silêncio, Lamar concluiu que talvez não fosse um bom momento para sentar e descansar. Como que querendo desfazer o que havia acabado de fazer, rapidamente levantou-se e prosseguiu.

--- Vocês lembram que... Do que falamos na aula passada? --- Alguns murmuraram que sim. --- Que, para praticar magia, a intenção é muito importante? Sentir a intenção e dirigi-la para alguém? --- Mais cabeças balançando afirmativamente. --- Bem, agora vocês vão fazer isso de novo, só que agora a intenção vai ser uma intenção em especial. Vocês vão se concentrar em enviar para o seu par um sentimento de conforto, c-como se vocês fossem... Dar um abraço nele, só que vão provocar essa mesma sensação a distância, entendem? --- O ar que respirava enchia-lhe de um fôlego de urgência. --- E lembrem-se, lembrem-se! Cada um por vez! Não ofereçam resistência ao outro! Deixem que o sentimento tome... Conta de vocês, caso ele estiver surgindo. É nisso que vocês têm que prestar atenção, sim?

O objetivo de Lamar nesta aula

O que Lamar queria que os alunos fizessem? Lamar foi um ex-discípulo de Byron. Como tal, ele está filiado à tradição dos bomins, mesmo depois que deixou de ser discípulo. Uma vez que se tornou alorfo, ele teria aprendido as técnicas específicas deles, mas não teria se diversificado quantos aos ataques (ainda manipularia elementos). No máximo, teria aprendido de outros alorfos (vindo de tradições diferentes) técnicas básicas de outras tradições. Aliás, um motivo secundário do ódio dos magos em relação aos alorfos e filinorfos é a forma como desrespeitam a regra elementar de separação de técnicas, respeitada mesmo dentro do contexto do Conselho dos Magos por causa da ameaça que cada mago representa aos outros.

De qualquer forma, Lamar está ensinando uma técnica bomin básica, que é dar a sensação de conforto a outra pessoa. O "básico", no entanto, não deve ser subestimado: o bomin só aprende uma técnica dessas depois de todo um treinamento de ataque e defesa com os elementos. O básico, nesse caso, significa que ela é mais simples que outras, mas não que seja simples para um iniciante.

De qualquer forma, Lamar não é um bomin comum. Ele não anda por Neborum, e não pratica magia. Então como ele pretende ensinar? Ele é, de certa forma, um "experimento" por parte dos alorfos de Kerlz-u-een: um alorfo que ensina magia sem precisar ir muito fundo na prática; um ensino teórico que deve fazer as pessoas terem uma noção do que é a magia para que possam se defender dela e entender melhor o mundo ao seu redor.

Lamar quer, portanto, causar o mesmo efeito de uma técnica bomin básica, mas sem que os alunos precisem lidar com Neborum. Em substituição a isso, Lamar conta com a vontade de cada um para produzir aquele efeito, e pede que os alunos não ofereçam resistência, ou seja, se tornem mais sugestionáveis e tenham a mente aberta em relação aos resultados.

Clique aqui para ler um artigo sobre o funcionamento da magia e entender melhor como o modo de ensinar de Lamar se diferencia do tradicional.

por Peterson Silva (Autor)

Lamar começou a vagar pelas duplas para observá-las de perto, embora soubesse que nesse estágio do treinamento não precisaria fazê-lo. Os iniciantes eram fáceis de ler em suas tentativas; faziam caretas contorcidas, como se aquilo lhes drenasse todas as energias do corpo. Outros, mais centrados, fechavam os olhos em um semblante tranquilo. Provavelmente não conseguiriam nada, mas algo começou a acontecer, deixando-o pouco a pouco desconfortável. Era um murmúrio, que Lamar logo percebeu vir de dois alunos em uma dupla.

Eles riam.

A mente de Lamar imediatamente inundou-se com estimativas. Riam de quê? Talvez rissem um do outro, por escárnio ou lembranças... Ou talvez achassem que a aula era simples demais para eles. Algo de todo muito básico.

E eles riam; riam com cada vez mais liberdade.

Se achavam-na fácil, talvez já fossem magos. Lamar sentiu medo por um momento --- que logo foi embora, como vento frio. Não, não eram magos. Se algum mago viesse à aula não seria imprudente de se revelar desta forma.

Sentia as bochechas pegarem fogo por dentro. O medo logo passou a irritação subindo-lhe a garganta, enchendo a cabeça como combustível para o que houvesse de mais negativo. Acaso achavam-se melhor que todos ali?

Não deveria pensar aquilo dos alunos. Não deveria principalmente repreendê-los assim, incentivando-os a abandonar a aula, não, isso ele não poderia fazer de maneira alguma... A raiva o sufocava. A situação, afinal, prejudicava a concentração dos outros aprendizes! A Lamar parecia, quando olhava em volta, que olhavam de volta para ele, não mais para os causadores de distúrbio. Procuravam seu olhar, guardando-lhe a repreensão mais dura, em que deixavam claro esperar dele uma atitude, por certo. Cobravam uma medida enérgica, repressiva --- que se fazia necessária, é claro, já que as risadas prosseguiam, acintosamente sinceras e ruidosas. Pelo menos ninguém parecia entender do que riam.

Os garotos gargalhavam ainda mais abertamente. Quase caíram pra trás, desequilibrando-se por um momento. Certamente não estavam aprendendo, não estavam tentando --- Por que estavam ali, então? Por que não ficaram em casa trabalhando, ou fazendo qualquer outra coisa? Por que vieram? Ou, se tinham alguma fazenda para estar, uma ocupação que fosse na cidade --- se a vida estava fácil para eles, bem, certamente não estava para muitos. Para Lamar, para aqueles alunos, para...

--- O que É tão engraçado? --- explodiu Lamar, irritado.

A dureza quebrou a espinha dorsal da risada. Os alunos passaram a olhar para Lamar, que mantinha um olhar revoltoso. As bocas se fecharam; as bochechas, murchas, denunciavam a vergonha recém-adquirida.

--- Não... N-Não sei.

--- Não sabe?! --- Ralhou Lamar, um pouco desconcertado com a resposta.

Esperava por alguma coisa. Qualquer coisa.

--- Não, a gente... --- Disse o outro, olhando para o chão. --- Riu, só... Desculpa.

Lamar sustentou seu olhar contra o deles por mais alguns segundos. linebreak Ora... De fato fora duro demais. Mas eles mereceram. Estavam sendo... Abusivos, impertinentes... Foi necessário. Foi preciso.

Sem dizer nada que encerrasse o assunto, recomeçou a andar para longe deles. Sussurrava para outras duplas, já totalmente dispersas do exercício, que retornassem às atividades.

"Gritar com aprendizes... Perder a paciência... Isso não sou eu... "

Lamar caminhou pelo lugar, completamente alheio. Olhava para a grama com a cabeça no que havia feito e por que o fizera. O que adicionava ainda mais peso à culpa era o silêncio, que não era absoluto; era antes ritmado por sons variados que expressavam a esmerada tentativa e a desalentada frustração --- com sorte era consequência da prática, e não de quase-mudos vereditos.

Um aluno chamou discretamente por Lamar, que perguntou o que ele sentiu. Tudo foi descrito conforme o esperado. Lamar estava quase zonzo, mas todos o viam com um sorriso no rosto; pelo menos tinha sucesso em parecer feliz por poder ser útil novamente. Enquanto ouvia coisas sobre calor, abraços e conforto, felicitava uma aluna pela magia praticada com êxito. Não sabia dizer quantos haviam ficado felizes e esperançosos, e quantos haviam visto aquilo como sinal de que estavam atrasados e não eram bons o suficiente. Lamar não tentou ajudá-los com aquilo. Não recordava mais o que havia acabado de dizer a quem quer que fosse.

Depois de um tempo, resolveu que já estava na hora de seguir com o plano para a aula.

--- Bem, é... Escutem! --- Chamou Lamar. --- Se vocês fossem capazes de... De produzir essa sensação sem um olhar, sem expressões, sem... Movimentos; seria ótimo. Mas, se não, está tudo bem. Existe algo que pode ajudar vocês. É um movimento com o punho! --- Ele agora voltara a ficar de frente para todos. Notou que havia se esquecido do homem de capa preta no fundo, à direita. --- Um movimento simples, só... Observem. Observem primeiro e depois repitam.

Abriu os dedos das mãos duas vezes, e então girava os punhos. Era um movimento simples, mas devia ser delicado, e muitos dos aprendizes o faziam de um modo grosseiro e desleixado. Precisou de vários ajustes para ensinar uma porção específica da turma e, mesmo depois de passado muito tempo de prática, o movimento não ajudara ninguém a causar o efeito esperado.

O movimento com o punho

Movimentos não funcionam, a rigor, para nada. Eles não provocam a técnica; não a potencializam ou a direcionam, não a especializam ou a tornam mais sutil ou mais duradoura. Não fazem nada. No entanto, atrelar movimentos corporais a técnicas é uma constante no ensino tradicional de magia por dois motivos: motivação e memória.

Um grande problema para um discípulo de magia é lidar com as regras de Neborum, um mundo que funciona a partir de uma lógica muito diferente. Para que se aprenda a fazer algo nele existe uma grande interpolação entre motivação, conhecimento, relações sociais (quem ensinou a técnica, em que contexto, etc) e o próprio oponente na qual ela é aplicada. As técnicas geralmente fazem referências a diversas salas dentro dos castelos, mas cada pessoa tem um castelo diferente, às vezes com salas que fazem a função de duas, ou uma destas funções sendo divididas em várias salas; ou às vezes a própria sala inexistindo de todo. Dessa forma uma técnica precisa ser adaptada, e a insegurança da adaptação pode atrapalhar a eficácia da técnica.

Nesse sentido, muitos mestres preferem "distrair" os alunos da verdadeira tarefa ao dar-lhes um foco novo: um movimento corporal. Ao ligar a técnica ao movimento corporal, a tarefa torna-se mais simples aos olhos do praticante, que por sua vez torna-se mais confiante. Motivado a partir de alguns sucessos iniciais, a técnica torna-se mais fácil de executar. O mestre costuma revelar, a certa altura, que os movimentos corporais não são mais necessários --- ou, se o discípulo ainda sofre com insegurança em relação às próprias habilidades, o mestre revela que o movimento não é mais necessário para aquela técnica em especial. No entanto, o movimento corporal nunca influenciou em nada a magia em si.

Outra vantagem do movimento corporal é a memorização: a partir da conexão do símbolo (movimento) com o conteúdo (todo o contexto em que a técnica deve ser realizada), fica mais fácil lembrar do conteúdo. Como dito acima, conteúdos podem ser volumosos em número de passos a executar e situações apropriadas para que a técnica possa ser feita!

Outro momento do livro em que isso acontece é quando Galvino associa à raiva a produção de fogo no Capítulo 40. Depois ele revela ao filho que aquilo não tem relação alguma: a ideia de que ele conseguiria fazer aquilo já havia sido plantada, e Galvino não precisava insistir em uma falsa associação. Essa é uma atitude inteligente: magos experientes, ao lutarem com magos aprendizes ou menos experientes, buscam ler em suas posturas, movimentos que não parecem práticos e suas emoções pistas sobre o que eles farão. Ser assim tão previsível é um defeito em termos de batalhas pela dominação de um castelo, e por isso a maioria dos magos precisa fazer um caminho curioso se eles quiserem se tornar realmente poderosos: usar os "atalhos" dos movimentos e das associações aleatórias para melhorar o conhecimento mágico e se aperfeiçoar. Depois, aprender a abandoná-los. Outros já suspeitam, portanto, que melhor mesmo é nunca usar os atalhos em primeiro lugar.

Clique aqui para ler um artigo sobre o funcionamento da magia e entender melhor seu ensino em Heelum.

por Peterson Silva (Autor)

Lamar se aproximou novamente de seu púlpito inexistente à margem do rio e olhou para o grupo. Percebeu que não dera atenção suficiente aos alunos mais à direita, que continuavam com alguns vícios que conseguira eliminar em outros. Poderia fazer isso na próxima aula, pensou, quando todos já estariam mais acostumados com o movimento.

--- Atenção! Atenção, por favor! --- Pediu Lamar.

Naquele momento percebeu, enfim, que o homem de laranja fazia o movimento. Movimento estranho, que por alguma razão não imediatamente óbvia chamava a atenção de Lamar. Percebeu, enfim, que o movimento era perfeito. Lamar podia comprovar aquilo mesmo de longe.

Como pôde se esquecer daquele homem?

--- É... Bem, fizemos um... Bom trabalho hoje... --- Começou ele. Como pôde simplesmente deixar que um estranho encapuzado assistisse à aula? --- E... É um trabalho difícil. É difícil mesmo conseguir realizar essas movimentações, essas... Esses movimentos do jeito certo leva muito tempo, não é qualquer um que consegue. --- Deu mais uma olhada de esguelha para ele. Como nem sequer pôde dar uma olhada no rosto do sujeito? --- Espero que na próxima aula vamos ter algo mais... Mais concreto.

--- Daqui a cinco dias?

--- Isso, isso mesmo. --- Confirmou Lamar, sem saber quem perguntava. --- Isso mesmo... Obrigado e até a próxima aula.

Quase cuspindo as últimas palavras, voltou-se para o rio. O sol se aproximava de Nauimior, o horizonte, e o céu adquiria cada vez mais os tons alaranjados que deveriam ser alegres e quentes, mas agora eram apenas melancólicos --- e nada disso o ajudava. Respirava devagar --- forçava-se a isso --- tentando se acalmar. Tinha quase certeza de que vira o homem de capa permanecer exatamente onde estava, mesmo em meio às conversas que foram enchendo o ar de balbúrdia. Alguns falavam sobre o frio, que começava a agir também sobre Lamar. Outros falavam sobre as coisas que deixaram incompletas quando vieram para a aula. Outros falavam sobre a própria aula.

Nauimior
Nauimior, como dito, é um outro nome para a linha do horizonte. O horizonte está profundamente relacionado à história do surgimento de Heelum.
por Peterson Silva (Autor)

Lamar não ouvia nada. Pensava em milhares de olhos o observando de cima com penúria e decepção; olhos de pessoas que ele não conhecia, mas que estiveram sempre ali. Vizinhos, parentes, concidadãos. Invisíveis, sem nome, julgando-o todos a cada fracasso.

Não conseguia dizer por quanto tempo havia ficado parado ali. Ao se virar, viu o capuz deslizado para as costas, os braços cruzados, a guarda da espada aparecendo na cintura. Viu um rosto que, sem dúvida, conhecia: claro, pacífico, até mesmo um pouco bobo, mas que já não parecia tão inocente por detrás da basta barba negra. O cabelo, também escuro, estava desvairado e cheio, dividido ao meio e caindo ao lado dos olhos como colunas enquadrando suas feições.

--- Lamar. Lamar. Lamar. --- Disse ele, resolvido a saborear cada sílaba. --- Então quer dizer que virou mestre?

--- Tornero. --- Reagiu, engolindo em seco. --- ... É.

--- Mestre de... O quê... Seriam... Trinta, trinta e cinco? Não parei para contar.

--- Vinte e seis. Vinte e cinco sem você.

Tornero, que já exibia um sorriso minúsculo, deixando entrever apenas parcialmente seus dentes, abriu-se num riso ostensivo e ritmado.

--- Você é um tolo.

Lamar engoliu mais uma vez.

--- O que... O que foi que você disse?

--- Que você é um tolo, Lamar, um tolo. Você não achou mesmo que poderia ensinar magia bomin em Prima-u-jir sem que ficássemos sabendo, não é?

Prima-u-jir e os magos

A magia não é totalmente proibida em Prima-u-jir. O que não é permitido é que um mago esteja no parlamento. É claro que, como é muito difícil provar o status de mago em relação a alguém, há muitos parlamentares magos em Prima-u-jir. Como é uma cidade tradicionalmente centralizadora em termos políticos, mas não em termos geográficos e urbanos, a democracia de Prima-u-jir nunca se expandiu muito e há poucos parlamentares - ou seja, o parlamentarismo assume mais uma forma de comitê do que de representantes de interesses daqueles que os elegem. Essa situação, evidentemente, se repete em muitas outras cidades.

A participação dos magos no parlamento também indica, é claro, o tamanho da influência deles, em geral econômica e institucional.

por Peterson Silva (Autor)

Olhava nos olhos de Tornero, forçando-se a não quebrar a conexão; era como se ela fosse a única forma de resistência que podia opor. Desviar os olhos significaria perder.

Mais uma vez.

Lamar e Tornero

Lamar e Tornero nasceram em uma mesma jir de Prima-u-jir. Lamar não nasceu em uma família rica; era uma família grande, e os pais eram os donos de uma quantidade de terra boa o suficiente para uma vida sem privações --- ainda que a quantidade de terras não chegava perto de muitos outros proprietários na região, dentre estes magos como o próprio Byron. A família de Tornero era de trabalhadores; eles não tinham as mesmas posses. Ainda assim, estando na vizinhança, Tornero e Lamar se conheciam desde crianças.

Surgiu uma oportunidade, e os pais de Lamar agarraram-na ao ceder as terras que tinham para Byron: um de seus filhos seria treinado para a magia, e Lamar recebeu a oportunidade. Tornero, orgulhoso, invejoso e competitivo desde a infância, viu naquilo grande combustível para sua raiva: por sua coragem e sua disposição de arranjar tudo, sentia-se merecedor de muito mais do que tinha. Ao saber que Lamar, um garoto "medíocre", havia conseguido um treinamento para ser mago, alimentou fúria contra o conhecido.

Mas Lamar não durou muito como aprendiz: sua série de insucessos e sua muito aparente falta de jeito ou motivação fez com que Byron desistisse dele. Tornero tomou seu lugar, Byron ficando impressionado com a determinação do garoto em conseguir aquilo. Ainda que Lamar não sentisse ter perdido muita coisa ao ter deixado de lado algo que definitivamente não gostava (de toda a sensação de Neborum), sentia-se um perdedor a partir de muitos outros ângulos: os pais ficaram visivelmente tristes pela oportunidade que ele jogou fora (um investimento que nunca rendeu frutos, afinal), e todos os mais velhos que sabiam da situação o recriminaram por jogar fora algo muito valioso. Além disso, Tornero, é claro, lembrava-o do caso a cada momento possível.

por Peterson Silva (Autor)

--- O que é que você é, Lamar? Um alorfo?

Alorfos

Os alorfos são uma outra tradição mágica. Para eles, a magia não é inerentemente ruim: ela poderia servir para bons propósitos, se, e apenas se, ela estivesse à disposição de todos. É a péssima distribuição de conhecimento sobre a magia - há muita ignorância, muita desinformação e muita concentração de poder - que causa a dominação de uma minoria sobre uma maioria desprivilegiada.

Apesar de terem vindo da mesma vertente crítica do mundo da magia, os alorfos e os filinorfos são tradições diferentes. Por serem ambos, em geral, contrários à dominação dos magos tradicionais, são geralmente tratados como um mesmo grupo por estes, constituindo uma única ameaça e recebendo a mesma repressão.

Clique aqui para ler uma observação do capítulo 2 relacionada ao assunto, e aqui para ler o artigo sobre os alorfos.

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por Peterson Silva (Autor)

--- Sim.

--- E onde você aprendeu essa bobagem?

--- Não interessa.

--- Insolente. --- Comentou Tornero, com os olhos repletos de desprezo ardendo em brasa. --- ESCÓRIA dessa cidade e desse mundo, é ISSO que vocês são! Você é um fracasso, Lamar. Um fracassado. Sempre foi e sempre será. Não se contentou em ter dado errado quando mostrou que era um fraco para a magia... Quis continuar tentando, não é? É claro que encontrou um lugar entre aqueles que acham que todos deveriam ser magos.

--- Você não entende, Tornero...

--- Você não entende! --- disse ele, escancarando os olhos. --- Você não entende e é isso que me preocupa.

--- Preocupa?

--- Sim, preocupa, Lamar. Quando Byron disse que você estava dando aulas eu não acreditei. Eu disse a ele. Disse que era mentira, disse que você era um inútil. Mas ele pediu que eu averiguasse... Então eu vim. E, de fato --- Tornero permitiu-se um minúsculo riso --- você não decepcionou minhas expectativas. Continua tão tolo e imprestável como julguei que fosse.

--- E-Eu sei que você não aprendeu magia desse jeito, mas sei também que todos demoram pra aprender... Estou ensinando de um jeito mais fácil. Do jeito que eu aprendi.

--- É verdade, Lamar? Então você se considera um grande mago?

Tornero deu dois passos para trás, como se quisesse ver aquele mestre noviço por uma perspectiva diferente. Lamar sabia que aquela era uma pergunta perniciosa. Não podia responder que sim, mas ao mesmo tempo não conseguia admitir --- não, não para Tornero --- que não era um bom mago.

Decidiu ficar quieto.

--- Você sabe que não pode me atacar, não é? --- Perguntou Tornero, com a voz baixa à nova distância. --- Pois bem. Eu quero que pare.

--- Não vou parar.

--- Eu quero que você pare, Lamar... Eu vim mesmo pedir que pare. Você está ensinando coisas que não devem ser ensinadas. Você está nos agredindo, Lamar. E você sabe que nós não gostamos de ser agredidos. Mas... --- Tornero fez um sinal com a mão, sinalizando para que Lamar não dissesse nada. --- Também vim pedir que pare porque isto é vergonhoso. Sinceramente... Sinceramente... Você sabe que magia não é movimentos de mãos, Lamar. Sabe que não tem a ver com olhares. Com essas... Caras e bocas. Não é possível, Lamar, mesmo com sua inteligência limitada, que você tenha esquecido disso, não é?

Havia algo difícil de explicar na forma como Tornero falava. Um jeito cheio de penúria. Lamar começou a sentir como se aceitar aquelas palavras de salvação fosse a única forma de escapar da iminente destruição. Uma destruição por irrelevância e ostracismo; uma forma de irreversível encolhimento de si mesmo, ao invés de rápida consumação no fogo. Lamar conseguia prever todo o tipo de coisa que Tornero poderia fazer; todo tipo de estrago. Era como lentamente cair em uma espiralada torrente de desespero; uma corrente sem fim de consequências e mais consequências de seus atos, levando ao mais nefasto dos fins.

Tornero explodiu em risadas condescendentes.

--- Você é mesmo patético, Lamar...

O mestre levantou os olhos, percebendo com os pelos da nuca uma verdade que vinha lentamente à tona.

--- Sua tarefa foi fácil, Lamar. Seus alunos são uns incompetentes. Fazer aqueles dois imbecis rir foi fácil. Fazer com que você se indispusesse com eles. Que sentasse no chão...

A dominação de Tornero
Tornero vêm usando técnicas bomins desde o momento em que chegou na aula de Lamar. Ele provocou em Lamar a vontade de sentar, fez com que os alunos rissem, atingiu a meta de Lamar em um dos alunos (fazendo com que o outro sentisse estar fazendo algo certo).
por Peterson Silva (Autor)

"Não... Não..."

"Não, não, não, não, não..."

--- Soterrei você em seu próprio castelo tão rápido que você não sentiu nada. --- Tornero recomeçou a caminhar, enquanto o alorfo continuou parado. --- Você, Lamar --- disse Tornero, voltando-se uma última vez para a conversa --- é como... Hm, como dizer? --- Levantando a mão, mostrou a ele a região em volta. --- Como um passeio no campo para mim.

Quando estimou que ele já devia estar longe, Lamar caiu no chão, de joelhos, com todas as suas culpas o atacando como rochas que caíam em um abismo --- ou como se ele próprio, na verdade, estivesse com elas, caindo. Despencava, podendo sentir cada palmo de sua inevitável morte no fundo de uma profunda fenda.

Enquanto lágrimas caíam pelo rosto, sua visão ficou turva. Sabia o que viria depois, e sentiu um tremor percorrer seu corpo; passou a intermitentemente contemplar uma espécie de escuridão espessa e seca, e sentiu-se apertado por todos os lados, em cada parte do corpo; sentia-se nauseado como toda vez que se deixava conduzir àquela terra estranha e, quase sufocando, sabia que pedir ajuda era inútil.

Neborum

É preciso reforçar que Neborum é um lugar de regras diferentes. Assim como há pessoas que enjoam em embarcações e pessoas que não o fazem, se acostumar a Neborum é algo que implica diferentes ritmos para diferentes pessoas. Seguindo a analogia, a rejeição psicológica é também um fator importante a considerar; se alguém tem medo de água, provavelmente não vai estar tão disposto a se acostumar com o balanço de um barco no meio do mar.

Para Lamar a experiência de Neborum nunca fora palatável: sem o costume, portanto, o lugar sempre é uma algazarra de imagens, sons e sensações que evocam dor, desconforto, náusea e profunda desorientação. O mais comum para todos os aprendizes é que se demore muito para sequer conseguir fazer com que Neborum torne-se um ambiente estável, ainda mais tempo para ficar de pé, mais tempo para andar, e muito mais tempo para fazer tudo isso sem que o corpo físico em Heelum não se mexa freneticamente a cada movimento feito em Neborum. E isso, é claro, é completamente relativo: cada um vê Neborum de maneira diferente, de forma que aquilo que é para um mago experiente um cenário absolutamente calmo pode ser para um discípulo o caleidoscópio mais confuso que poderia existir.

por Peterson Silva (Autor)

Na magia, mais do que em qualquer outra coisa, era verdade o que diziam: não se pode deixar de ver o que foi visto. Mas, ainda assim, ele não conseguia deixar de tentar.

Cada vez mais desesperado, levou a mão aos olhos úmidos. A escuridão se dissipava e se transformava, aos poucos, em uma espécie de claridade marrom-clara, com alguns focos de luz azul como os espaços deixados para as janelas em uma construção de madeira. Via Tornero. Via o céu e via luzes de velas, tudo em uma estranha dança da qual não queria ser espectador.

Começou a esfregar o rosto violentamente com as duas mãos. Apertava as pálpebras tão forte que a vertigem veio.

Viu-se, enfim, esticado entre os dois mundos.

Caiu pra trás, mas sentia-se em pé --- ou deitado --- e tonto. Perdeu a noção do tempo que passou massageando o rosto, ora mais calmamente, ora de forma mais nervosa. Apenas quando voltou a ver somente o negrume incompleto das próprias mãos sobre sua vista esfoliada, sentindo a grama fria roçando a nuca --- só então sentiu-se seguro para abrir os olhos de novo. Contemplou o céu laranja e as pálidas nuvens com alívio. Convencendo-se de que o melhor a fazer era ir para casa, levantou-se e, com passadas lentas, foi embora.

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